Segurança Pública: Decreto do governo federal sobre GCMs possui caráter meramente simbólico

Divulgado em 22/01/2024 - 11:00 por José Higídio*

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) assinou, no fim do último mês de dezembro, um decreto que regulamenta trechos do Estatuto Geral das Guardas Municipais. O texto reforça que os guardas civis municipais (GCMs) podem efetuar prisões em flagrante, por exemplo.

No entanto, especialistas no assunto ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico apontam que, na prática, o decreto não traz qualquer novidade. A norma, na verdade, é simbólica: serve como manobra política e tentativa de conter certos efeitos da jurisprudência recente do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema.

Ao anunciar a publicação do decreto, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino — que assumirá uma cadeira no Supremo Tribunal Federal no próximo mês —, deixou claras as intenções do governo federal: “Guardas Municipais mais fortes e com mais segurança jurídica para atuarem na segurança pública”.

Chovendo no molhado

O artigo 2º do decreto diz que as Guardas Municipais podem fazer patrulhamento preventivo. Por sua vez, o artigo 5º prevê que esses órgãos também podem fazer prisão em flagrante; apresentar o preso e a notificação da ocorrência à polícia competente para apuração do delito; e contribuir para a preservação do local do crime, quando possível e sempre que necessário.

A criminalista Márcia Dinis lembra que o Estatuto das Guardas já estipula competências específicas dessas forças locais, tais como: prevenir, inibir e coibir infrações penais ou administrativas contra os bens, serviços e instalações municipais; colaborar com outros órgãos de segurança pública pela paz social; garantir o atendimento de emergências ou prestá-lo diretamente quando se deparar com elas; e, em caso de flagrante, encaminhar o autor da infração ao delegado de polícia e preservar o local do crime.

“Considerando as disposições do estatuto, o patrulhamento preventivo e a prisão em flagrante fazem parte das competências regulares das Guardas Municipais, de forma que o decreto não confere novas atribuições”, conclui a advogada.

O também criminalista Aury Lopes Jr., professor da PUC-RS, aponta que o decreto é muito mais simbólico do que efetivo: “Um golpe de cena, pois não cria nada e não muda nada”.

Segundo ele, o texto não promove avanços no tema dos guardas. “Persiste uma grande lacuna jurídica sobre qual o espaço de poder que eles possuem e quais as suas funções e os seus deveres.”

Lopes Jr. destaca que, conforme os artigos 301 e 302 do Código de Processo Penal, efetuar a prisão em flagrante é “um dever dos agentes públicos e uma faculdade de qualquer pessoa”. Ou seja, qualquer cidadão pode prender quem estiver em flagrante delito.

O advogado não vê na norma nada que torne as Guardas Municipais mais fortes ou lhes dê maior segurança jurídica: “O decreto apenas reafirma um poder já existente no CPP desde 1941”.

Já o trecho sobre preservação do local do crime é, segundo ele, “completamente genérico”, pois a ideia de contribuir “quando possível” é “vaga e imprecisa, além de subjetiva”. Na sua visão, o artigo deveria, no mínimo, “criar um dever legal de preservação do local do crime até a chegada dos peritos ou da autoridade com poder de polícia judiciária”.

Cálculo político

O defensor público Bruno Shimizu, membro da diretoria do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e doutor em Direito Penal e Criminologia, concorda que o decreto “não tem qualquer efeito jurídico no que diz respeito às hipóteses em que a GCM está autorizada a realizar abordagens”, já que repete as previsões do CPP.

Ou seja, a norma não permite (e nem poderia, pois o tema é constitucional) que os guardas façam buscas pessoais ou revistas em pertences e veículos com base em alegação de “fundada suspeita”. Para isso, seria necessária a “ciência prévia acerca da prática de crime”.

Por outro lado, Shimizu diz que o decreto “parece ser uma sinalização política à categoria dos guardas”, com o objetivo de aproximá-los para apoiar o governo — “em contraposição às corporações policiais, que majoritariamente aderiram ao campo bolsonarista”.

Na visão do defensor, a “pulverização da atividade policial por corporações paramilitares municipais” é uma “política absolutamente equivocada de segurança pública”.

Ele ressalta que as Guardas Municipais não estão submetidas a um controle externo do Ministério Público e respondem apenas às suas corregedorias internas (não judiciais) e ouvidorias.

Para Shimizu, a principal preocupação é saber se Flávio Dino “continuará a defender esse modelo equivocado de segurança pública no STF”.

“O decreto não inova em nada, mas pode ser uma sinalização de que o ministro, no STF, seja uma força para alterar a jurisprudência consolidada do STJ sobre o tema.”

Contraponto ao STJ

Em setembro do ano passado, a 3ª Seção do STJ, sob a relatoria do ministro Rogerio Schietti Cruz, confirmou que a atividade das Guardas Municipais não é equiparada à das polícias.

Desde 2022, Schietti tem sido responsável por construir uma jurisprudência da corte no sentido de que as ações das GCMs para repressão e prevenção ao crime só podem ocorrer se estiverem relacionadas de forma direta à finalidade da corporação (proteção de bens, serviços e instalações do município).

Nos últimos anos, ministro Rogerio Schietti Cruz construiu jurisprudência no STJ sobre atuação das GCMs

Na maioria dos casos, isso significou a anulação de provas decorrentes de abordagens e buscas pessoais feitas por guardas em situações que não eram de flagrante.

Por serem autoridades públicas, os guardas municipais podem ter poder de polícia — um conceito do Direito Administrativo que envolve a possibilidade de restrição dos direitos dos cidadãos. O mesmo ocorre com um guarda de trânsito que apreende um carro.

O advogado Eduardo Pazinato, professor universitário e conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), considera que “alguns ruídos de comunicação têm aparecido” no STJ, de forma mais direta, com relação à discussão sobre o poder de polícia das GCMs.

Segundo ele, Schietti tem proferido decisões, em situações específicas, que “podem conduzir a uma interpretação equivocada”, contrária à Constituição, ao Estatuto das Guardas e à Lei do Sistema Único de Segurança Pública (Susp).

“É claro que o processo de flagrância não autoriza a entrada em domicílio sem mandado judicial”, ressalta. “Se algum guarda municipal, na sua atuação ordinária, abusou dessa autoridade ou violou algum desses dispositivos, evidentemente a decisão do ministro Schietti sobre o caso concreto vai ser de rechaçar esse tipo de violação.”

Porém, de acordo com Pazinato, a jurisprudência arquitetada por Schietti acaba “convalidando interpretações equivocadas” de policiais militares e civis. Como exemplo, ele cita que delegados não vêm registrando flagrantes apresentados pelas GCMs.

Outra situação recorrente apontada pelo advogado é a prisão de guardas que portam arma de fogo. De acordo com ele, isso é “disciplinado para profissionais da segurança há mais de 15 anos no Brasil”, em “um regramento inclusive constitucional e reconhecido pelo STF”. O Supremo já decidiu que todos os guardas, mesmo de cidades pequenas, têm direito ao porte de arma de fogo.

Pazinato avalia que essas atitudes “concorrem para uma insegurança jurídica”. O decreto de Lula e Dino tem “efeitos bem mais simbólicos do que práticos” porque “vem no sentido de apoiar uma ambiência com maior segurança jurídica”.

José Higídio - é repórter da revista Consultor Jurídico.

**Fonte: www.conjur.com.br