Sistema universal e gratuito criado pelo Banco Central desafia interesses de big techs e bandeiras de cartões dos EUA, que deixam de ganhar bilhões de dólares por anualmente com seus meios de pagamentos
Poucos fenômenos recentes conseguiram unir o Brasil como o Pix. Criado pelo Banco Central (BC) em parceria com o setor financeiro privado, o sistema de pagamentos instantâneos caiu no gosto da população — é usado por 93% dos brasileiros adultos — e transformou o modo como o país se relaciona com o dinheiro. Mas o sucesso do Pix agora extrapola as fronteiras nacionais e passou a incomodar setores poderosos nos Estados Unidos.
O Representante Comercial dos Estados Unidos (USTR, na sigla em inglês) abriu uma investigação sobre práticas comerciais consideradas “potencialmente desleais” por parte do Brasil, citando preocupações sobre a competitividade de empresas americanas nos setores de comércio digital e pagamentos eletrônicos. Embora o Pix não seja citado diretamente, os sinais no comunicado são claros: o alvo está no sistema que desafia gigantes como as bandeiras de cartões Visa e Mastercard e big techs como a Meta.
Um desafio ao modelo americano – O Pix foi lançado em novembro de 2020 e rapidamente se tornou o meio de pagamento mais popular do país, superando cartões de débito, boletos e até o dinheiro em espécie. Com a chegada de recursos como Pix Parcelado e Pix Automático, começou a disputar espaço também com os cartões de crédito.
A adesão ao sistema é compulsória para bancos e instituições de pagamento autorizadas, o que garante sua universalidade: qualquer pessoa pode enviar ou receber dinheiro de qualquer banco, a qualquer hora, gratuitamente. Além disso, o Pix opera nos trilhos do sistema bancário tradicional e digital, sem depender de cartões ou crédito, o que favorece a inclusão financeira de milhões de brasileiros.
Esse modelo contrasta com o sistema dos EUA, onde a adesão a soluções como o FedNow — plataforma criada pelo banco central americano — é voluntária. Além disso, o ambiente é altamente fragmentado, com várias soluções privadas concorrendo entre si, como Zelle e RTP.
O papel do Estado – apesar de operado pelo Banco Central, o Pix não é uma solução exclusivamente estatal. Desde 2018, seu desenvolvimento envolveu grupos de trabalho com ampla participação do setor privado. Após resistência inicial, bancos tradicionais aderiram ao sistema, pressionados pela ascensão dos bancos digitais.
Essa adesão obrigatória foi crucial para o sucesso do Pix e inviabilizou iniciativas concorrentes, o que também pode estar na raiz do desconforto americano. No contexto do comércio internacional, o sistema brasileiro pode ser visto como uma intervenção estatal que distorce o mercado — especialmente por países onde a regulação é mais liberal e a competição entre empresas privadas é a regra.
Inclusão financeira e impacto social – curiosamente, o Pix vem sendo celebrado mundialmente como modelo de inclusão financeira. Dados da ABFintechs apontam que cerca de 60 milhões de brasileiros foram bancarizados na última década, impulsionados por fintechs e pelo acesso facilitado ao Pix. O fenômeno também ocorre em outros países emergentes, pois o pagamentos em tempo real leva ao empoderamento de jovens e pessoas de baixa renda.
O Pix representa uma revolução silenciosa no sistema financeiro brasileiro — e talvez por isso, tão barulhenta no cenário internacional. Seu sucesso expõe as diferenças entre os modelos regulatórios dos dois países e desafia o domínio de gigantes americanos em um setor bilionário. A investigação do USTR é o primeiro sinal de que essa disputa pode ultrapassar os bastidores e ganhar contornos diplomáticos.
Fonte: Jornal Valor Econômico