Conjur – Educação inclusiva: legislação, jurisprudência e aspectos práticos

A cada novo ano, os estudantes, os pais e responsáveis e as próprias instituições públicas e privadas de ensino enfrentam o desafio que é a realização das matrículas. Esse período é especialmente desafiador nos casos em que o aluno é uma criança, adolescente ou adulto com deficiência, já que esse público muitas vezes se defronta com a dificuldade e, até mesmo, a resistência das instituições em ofertar uma educação inclusiva.

O desconhecimento da legislação e da posição dos tribunais sobre o assunto, tanto pelos estudantes, pais e responsáveis, quanto pelas instituições públicas e privadas, muito contribui para essa realidade.

Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência ou Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015) é um marco para a promoção da educação inclusiva no país e, conforme consta de seu artigo 1º, tem como objetivo: "assegurar e [] promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania".

O Capítulo IV ("DO DIREITO À EDUCAÇÃO") da referida Lei é o ponto de partida para quem queira se inteirar do tema e, em seu artigo 27, prevê:

Art. 27. A educação constitui direito da pessoa com deficiência, assegurados sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a vida, de forma a alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas características, interesses e necessidades de aprendizagem.
Parágrafo único. É dever do Estado, da família, da comunidade escolar e da sociedade assegurar educação de qualidade à pessoa com deficiência, colocando-a a salvo de toda forma de violência, negligência e discriminação.

Ao tempo em que o acesso a um sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a vida é um direito das pessoas com deficiência, o seu fornecimento é um dever do Estado, da família, da comunidade escolar e da sociedade.

O artigo 28 do Estatuto e seus respectivos incisos minudenciam os desdobramentos gerais desse dever para o Poder Público e o parágrafo primeiro para as instituições privadas, a quem aplica-se o dispostos em incisos I, II, III, V, VII, VIII, IX, X, XI, XII, XIII, XIV, XV, XVI, XVII e XVIII, em linha com o decidido pelo STF na ADI nº 5357.

Existem, entretanto, previsões legais mais específicas e práticas que merecem destaque.

Conforme o artigo 2º, I, "f", da Lei nº 7.853/99, a matrícula das pessoas com deficiência capazes de se integrar ao sistema de ensino é compulsória:

Art. 2º, I: f) a matrícula compulsória em cursos regulares de estabelecimentos públicos e particulares de pessoas portadoras de deficiência capazes de se integrarem no sistema regular de ensino;

Disposição complementada pelo artigo 8º, I e  §1º, da já mencionada Lei nº 7.853/99 e pelo artigo 7º da Lei nº 12.764/12 da seguinte forma:

Art. 8º Constitui crime punível com reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa:
I – recusar, cobrar valores adicionais, suspender, procrastinar, cancelar ou fazer cessar inscrição de aluno em estabelecimento de ensino de qualquer curso ou grau, público ou privado, em razão de sua deficiência;
§ 1º Se o crime for praticado contra pessoa com deficiência menor de 18 (dezoito) anos, a pena é agravada em 1/3 (um terço).
Art. 7º O gestor escolar, ou autoridade competente, que recusar a matrícula de aluno com transtorno do espectro autista, ou qualquer outro tipo de deficiência, será punido com multa de 3 (três) a 20 (vinte) salários-mínimos.

Assim, a matrícula da pessoa com deficiência nas instituições públicas e particulares de ensino é compulsória e a sua recusa, procrastinação, suspensão, cancelamento, bem como a cobrança de valores adicionais, se motivadas pela própria deficiência, configuram crime punível com pena de reclusão e multa.

Sobre o tema, o TJ-DF já estabeleceu, à luz do Estatuto, que "a matrícula de pessoas com deficiência é obrigatória pelas instituições de ensino particulares" e, ao julgar caso semelhante, afirmou o TJ-PE que "não se admite que a entidade lhe negue acesso a estabelecimento escolar sob sua mantença, pela simples razão de ser ela pessoa com deficiência"[1].

A leitura conjunta do artigo 28, caput e II, com o artigo 3º, XIII, ambos do Estatuto da Pessoa com Deficiência revela ainda que a garantia das condições de acesso ao sistema educacional, inclusive por meio da contratação de profissionais de apoio, caso necessário, é também um dever das instituições públicas e privadas de ensino.

O TJ-DF também já se debruçou sobre essa questão específica tanto no contexto do ensino público quanto do ensino privado tendo assegurado o direito do aluno com deficiência ao atendimento educacional especializado, inclusive com a disponibilização de monitor, nos casos em que isso se mostrou necessário[2].

No caso das pessoas com o Transtorno do Espectro Autista (TEA), a referida obrigação está expressa no artigo 3º, IV, "a", parágrafo único, da Lei nº 12.764/12:

Parágrafo único. Em casos de comprovada necessidade, a pessoa com transtorno do espectro autista incluída nas classes comuns de ensino regular, nos termos do inciso IV do art. 2º , terá direito a acompanhante especializado.

O julgamento realizado pelo TJ-MS em sede de Ação Civil Pública é ilustrativo por aplicar o referido artigo para garantir o referido direito para uma criança com TEA matriculada em uma instituição particular de ensino[3].

O descumprimento de quaisquer dos comandos legais acima abordados poderá gerar significativas consequências de natureza cível e, inclusive, penal, que podem atingir as instituições públicas e privadas de ensino e os seus gestores.

Na esfera cível, em dois dos casos julgados pelo TJ-DF e anteriormente citados, foram arbitradas indenizações a título de dano moral nos valores de oito e vinte mil reais. Também já arbitraram indenizações dessa ordem o TJ-SP e TJ-PR em casos julgados nos anos de 2017 e 2021[4].O tribunal paulista, aliás, chegou a reconhecer em 2020 o ilícito penal cometido por um diretor que recusou a matrícula de um aluno com deficiência e a condicionou a cobrança de valores adicionais, tendo aplicado penas restritivas de direito em seu desfavor[5].

Vê-se, assim, que os tribunais pátrios têm sido firmes em coibir o descumprimento da legislação subjacente ao direito à educação das pessoas com deficiência.

Por fim, além da legislação vigente em âmbito nacional, existem regras e diretrizes específicas vigente em cada unidade da federação aplicáveis às instituições públicas e às instituições privadas de ensino.

As instituições públicas e privadas de ensino, devem, portanto: i. estar atentas à legislação vigente e aos riscos cíveis e penais que eventuais descumprimentos representam; e ii. implementar todas as medidas necessárias à garantia de uma educação verdadeiramente inclusiva.

Os estudantes, pais e responsáveis devem se informar sobre os direitos garantidos à população com deficiência, de modo a não admitir qualquer tipo de descumprimento, acessando, caso necessário, o Poder Judiciário.

O Estado, a comunidade escolar e a sociedade civil como um todo devem, por sua vez, trabalhar em conjunto para tornar a educação inclusiva uma realidade.

  • [1] TJDFT, Acórdão n. 1.189.862, publicado em 6/8/2019; e TJPE, Remessa Necessária Cível 405294-00005225-84.2014.8.17.0220, publicado em 23/09/2019.
  • [2] TJDFT, Acórdão n. 1.111.057, publicado em 31/7/2018; Acórdão n. 1.325.286, publicado em 19/3/2021; e Acórdão n. 1.307.065, publicado em 21/1/2021.
  • [3] TJMS, Ação Civil Pública CNJ n. 0804565-86.2013.8.12.0008, publicado em 3/5/2017.
  • [4] TJPR, CNJ n. 0014843-77.2018.8.16.0014, julgado em 11/3/2021; e TJSP, CNJ n. 1016037-91.2014.8.26.0100. julgado em 08/11/2017.
  • [5]TJSP, Apelação Criminal n. 0005632-28.2016.8.26.0428, publicado em 9/10/2020.

* Gabriel Estevam Botelho Cardoso é sócio do Torreão Braz Advogados, atuante no Direito Empresarial em matéria consultiva e contenciosa com foco em discussões contratuais estratégicas no mercado de infraestrutura.

Compartilhar

Comentar

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Ofertas

Rádio

Cotação Diária

BRL/USDR$5,42
BRL/EURR$6,39
BRL/BTCR$602.333,33
BRL/ETHR$13.620,6
04 jul · CurrencyRate · BRL
CurrencyRate.Today
Check: 05 Jul 2025 02:05 UTC
Latest change: 05 Jul 2025 02:00 UTC
API: CurrencyRate
Disclaimers. This plugin or website cannot guarantee the accuracy of the exchange rates displayed. You should confirm current rates before making any transactions that could be affected by changes in the exchange rates.
You can install this WP plugin on your website from the WordPress official website: Exchange Rates🚀
Edit Template

Youtube

*Os textos publicados são de responsabilidade exclusiva do autor e não refletem, necessariamente, a opinião deste veículo de comunicação ou de seus controladores.

*Proibida a reprodução total ou parcial, cópia ou distribuição do conteúdo, sem autorização expressa por parte desse portal.