Em um país com carga tributária já entre as mais altas do mundo, parte expressiva do empresariado brasileiro continua a defender, sem constrangimento, a criação ou antecipação de impostos de importação com o suposto objetivo de proteger a “indústria nacional” e seus “trabalhadores”. O mais recente episódio dessa velha novela é protagonizado pela Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), agora sob comando de Igor Calvet, ex-secretário do governo Temer e Bolsonaro, que lidera a ofensiva contra a presença de montadoras chinesas no Brasil.
A narrativa da vez? Os carros chineses, especialmente os elétricos, estariam “invadindo” o mercado nacional de forma “desleal”, por conta de subsídios estatais e economia de escala. A solução proposta: aumentar rapidamente os impostos de importação de 18% para 35% antes do prazo previsto em 2026 — quem vai pagar a conta, naturalmente, é o consumidor brasileiro.
A ironia mora nos detalhes. Enquanto clamam por “recompor a alíquota” e acusam a concorrência de “só apertar parafusos”, as montadoras tradicionais ignoram décadas de proteção e benefícios fiscais recebidos no Brasil — sem nunca terem, de fato, transformado o país em polo de inovação. A alegação de que se preocupam com os empregos dos brasileiros é, no mínimo, cínica, vinda de um setor que já terceirizou boa parte da produção e sufocou qualquer tentativa de baixar os preços ao consumidor.
Proteger ou perpetuar?
A retórica protecionista, travestida de nacionalismo econômico, não se limita ao setor automotivo. Do setor financeiro ao de serviços, há uma tendência entre os empresários brasileiros de recorrer ao Estado para se blindar da concorrência estrangeira — mesmo que isso signifique limitar o acesso da população a produtos mais modernos e baratos.
A desculpa? Que a China pratica dumping, que o México ameaça o mercado, que os Estados Unidos impuseram tarifas altíssimas. Mas a realidade é que, em vez de buscar eficiência, inovação e competitividade, os “campeões nacionais” preferem manter seus feudos intocados. A competitividade, afinal, é bem-vinda — desde que fique do lado de fora da alfândega.
O consumidor, como sempre, fica com a fatura
Enquanto as montadoras pressionam por um aumento tarifário imediato, as tarifas mais altas previstas para 2026 ainda nem entraram em vigor. Mesmo assim, a Anfavea quer acelerar a cobrança — argumentando que a antecipação das importações por parte das chinesas exige uma resposta “urgente”.
Resta perguntar: proteger quem, exatamente? O trabalhador da linha de montagem ou os acionistas das empresas que lucraram por décadas em um dos mercados mais fechados do mundo? O discurso da “afronta ao Estado brasileiro” revela mais sobre o espírito cartorial dos empresários do que sobre qualquer real ameaça à indústria.
Conclusão: um país amarrado à sua própria elite
Enquanto o Brasil se mantém fechado, caro e tecnologicamente atrasado, seus consumidores continuam pagando caro por produtos inferiores. E a elite empresarial, sempre disposta a erguer barreiras alfandegárias em nome do “desenvolvimento nacional”, insiste em confundir interesse público com proteção de mercado — seu mercado, claro.
Talvez esteja na hora de virar o parafuso — ou pelo menos de parar de pagá-lo com juros e impostos.
*Fonte: www.estadao.com.br – como base para produção de uma crítica a solicitação da Anfavea